RESUMO
A anafilaxia apresenta uma incidência crescente, particularmente em idade pediátrica. Constituindo uma emergência médica, o
sucesso terapêutico depende de uma intervenção precoce e adequada. A adrenalina por via intramuscular constitui o fármaco de
eleição para o seu tratamento, devendo a dose ser ajustada ao peso e à idade. Resolvida a reação aguda, o doente deve ser mantido
sob vigilância médica por um período de 6 a 24 horas, pelo risco de ocorrência de reações bifásicas. Deverá ser considerada a
prescrição de um dispositivo de autoadministração de adrenalina em todos os doentes com diagnóstico ou suspeita de anafilaxia;
adicionalmente estes doentes têm indicação formal para estudo em consulta de imunoalergologia, de modo a permitir uma adequada
intervenção diagnóstica e terapêutica que reduzirá o risco futuro. Todos os episódios de anafilaxia devem ser registados no Catálogo
Português de Alergias e outras Reações Adversas (CPARA), constituindo este um instrumento fundamental de partilha de informação
clínica dentro do Sistema de Saúde. Este manuscrito pretende divulgar as orientações para o diagnóstico e tratamento da anafilaxia,
tornando a sua abordagem clínica mais eficiente e consertada a nível nacional, e promover a adesão ao Catálogo Português de
Alergias e outras Reações Adversas como um instrumento essencial de registo e partilha de informação dos episódios de anafilaxia
ocorridos em Portugal.
INTRODUÇÃO
A anafilaxia é uma reação sistémica de gravidade variável,
habitualmente com início rápido, potencialmente
fatal. Apesar dos consensos clínicos que estabelecem os
critérios de diagnóstico e intervenção terapêutica adequada,
continua a ser uma entidade pouco reconhecida. Este
desconhecimento condiciona um diagnóstico e tratamento
incorretos, passando nomeadamente pela subutilização da
principal terapêutica recomendada, isto é, da adrenalina.
Nos últimos anos o impacto da anafilaxia tem vindo a
crescer, particularmente em alguns grupos de risco como
as crianças e os adolescentes. Sendo uma situação angustiante,
quer para o próprio, quer para os seus conviventes,
a sua adequada gestão e subsequente referenciação têm
implicações a nível clínico, social e económico. Na ausência
de identificação da causa da anafilaxia, quer por
não ser feita uma conveniente investigação etiológica, quer
por insucesso na identificação do agente causal apesar de
investigação apropriada, não serão instituídas as medidas
de prevenção adequadas. O desconhecimento da causa da
anafilaxia, por conseguinte, poderá levar à manutenção de
exposições de risco, com eventual recorrência e aumento
da gravidade das reações, ou a evicções desajustadas,
condicionando restrições alimentares ou medicamentosas
injustificadas. As evicções extensas, instituídas sem base
num adequado processo diagnóstico, para além de frequentemente
desnecessárias, podem implicar a substituição
por alternativas menos favoráveis em termos clínicos e
nutricionais, tendo muitas vezes também um significativo
impacto económico. O diagnóstico de anafilaxia idiopática
deve ser considerado um diagnóstico de exclusão.
O presente artigo pretende divulgar as orientações para
o diagnóstico e tratamento da anafilaxia em Portugal, promovendo
a uniformização dos critérios e abordagens clínicas
utilizadas nos diferentes níveis de cuidados médicos.
Adicionalmente, pretende alertar para a importância e obrigatoriedade
do registo sistemático das situações clínicas
compatíveis com o diagnóstico de anafilaxia.
EPIDEMIOLOGIA
Os dados disponíveis sobre a incidência e prevalência
da anafilaxia são frequentemente pouco rigorosos, correspondendo
a estimativas por defeito resultantes do seu
subdiagnóstico e subnotificação. Fatores como a heterogeneidade
demográfica, a utilização de diferentes critérios de
avaliação e classificação, os diversos graus de diferenciação
dos cuidados de saúde onde são avaliados os doentes
com anafilaxia, entre outros, contribuem adicionalmente
para a heterogeneidade dos dados publicados.
Em Portugal, até 2011, os dados sobre anafilaxia eram
provenientes, fundamentalmente, do sistema de notificação
implementado pela Sociedade Portuguesa de Alergologia e
Imunologia Clínica (SPAIC). No entanto, este sistema, para
além de estar restrito aos sócios da SPAIC, baseava-se em
notificações feitas voluntariamente, o que limitava os dados
obtidos. Mais recentemente, foi proposto e implementado o
Catálogo Português de Alergias e outras Reações Adversas
(CPARA) e foi instituída a obrigatoriedade de notificação
da anafilaxia por Norma da Direção-Geral da Saúde.
Estes factos contribuíram para o aumento das notificações,
alargando-as a profissionais de saúde sem formação específica
em Imunoalergologia e aos próprios doentes. Desta
forma pretendeu-se melhorar a informação disponível sobre
estas reações e promover a sua partilha no Sistema de
Saúde. Segundo os dados preliminares obtidos a partir dos
registos efetuados no CPARA durante os seus primeiros 10
meses de utilização (julho de 2012 a maio de 2013), foram
notificados 11,2 casos de anafilaxia por 100 000 habitantes
(n = 1 209, sendo 71% no sexo feminino) e a idade média
(desvio padrão) de 51,8 (20,2) anos.
A nível europeu, dados recentes provenientes de uma
plataforma piloto de registo de anafilaxia, incluindo 10
países (Portugal não incluído), referem 3 333 casos reportados
(entre junho de 2011 e março de 2014), 27% dos
quais em idade inferior a 18 anos. É de referir a elevada
prevalência relativa de reações associadas a medicamentos
e a baixa frequência relativa de reações com alimentos
e, principalmente, com venenos de himenópteros,
registadas em Portugal, quando comparadas com outros
países Europeus. Estas diferenças entre Portugal
e os restantes países da Europa resultam em larga medida
da diferente organização dos sistemas de saúde e da
heterogeneidade dos sistemas de notificação/registo, nomeadamente
relacionadas com o notificador (por exemplo,
em Portugal a informação pode ser fornecida pelo doente,
o médico – especialista ou não especialista – ou outro
profissional de saúde), com o tipo de reações notificadas
(confirmadas versus em estudo/suspeitas) e com o acesso
aos meios de notificação (em Portugal, a notificação no
CPARA não está ainda acessível em todos os softwares
clínicos). Adicionalmente, as assimetrias regionais, com
consequentes diferenças em termos de regime alimentar,
prescrições farmacológicas e exposições ambientais, explicam
também, em parte, as diferenças entre os vários
países. No caso específico da diferença de prevalência de
anafilaxia a medicamentos entre Portugal e os restantes
países europeus avaliados, os elevados consumos de antibióticos
e de anti-inflamatórios não esteróides verificados
em Portugal, poderão estar na base do maior número
de reações a fármacos. No entanto, não é de excluir um
viés relacionado com a notificação preferencial de reações
a medicamentos em relação a outras etiologias.
Uma revisão sistemática a nível europeu estimou uma
incidência populacional de dois a oito casos por 100 000
pessoas-ano e com tendência crescente. Estima-se que
aproximadamente 0,3% da população europeia desenvolverá
anafilaxia em algum momento da vida.
A falta de dados clínicos e de exames laboratoriais específicos,
bem como a pouca especificidade dos achados
nos exames pós-morte, levam a que a taxa de mortalidade
seja difícil de determinar. São referidas na literatura
até 0,05 mortes por 100 000 habitantes,12 o que pode ser
considerado uma taxa de mortalidade baixa. No entanto
pensa-se que existirá uma subnotificação, nomeadamente
em doentes com asma. São de realçar os vários fatores de
risco para mortalidade já identificados na literatura:
• Ausência ou atraso na administração de adrenalina;
• Existência de comorbilidades, como asma, mastocitose
sistémica ou outras doenças crónicas (por exemplo:
cardiovasculares ou pulmonares);
• Ausência de diagnóstico prévio;
• Precocidade do início dos sintomas (até 30 minutos);
• Tipo de desencadeante (por exemplo: frutos secos,
amendoim);
• Idade (adolescentes e idosos);
• Terapêutica concomitante com ß-bloqueantes e inibidores
da enzima de conversão da angiotensina.
A necessidade de melhorar o reconhecimento, notificação
e gestão desta entidade de prevalência crescente,
realça a importância de se generalizar a implementação
efetiva das Normas Clínicas sobre Anafilaxia, publicadas
pela Direção-Geral da Saúde e Ordem dos Médicos.
CRITÉRIOS DE DIAGNÓSTICO
A maioria das reações anafiláticas ocorre na primeira
hora após a exposição ao desencadeante, podendo contudo
ocorrer casos em que os sintomas surgem algumas
horas após o contacto. A reação pode ocorrer por ingestão,
injeção, inalação ou contacto mucocutâneo com o alergénio
ou outro agente desencadeante.
A anafilaxia, pelo seu carácter sistémico, pode traduzir-
se numa combinação de diversas manifestações clínicas,
sendo fundamental conhecer os seus critérios de
diagnóstico , as suas manifestações mais frequentes
, a classificação da gravidade , bem como os diagnósticos diferenciais
Adrenalina
A adrenalina constitui a primeira linha de tratamento e
recomenda-se que seja administrada por via intramuscular,
preferencialmente na face ântero-lateral da coxa, imediatamente
após a avaliação inicial. A dose deve ser ajustada de
acordo com o peso, na razão de 0,01 mg/kg até ao máximo
de 0,3 mg (0,3 mL de uma solução a 1:1 000 – 1 mg/mL)
em crianças (< 12 anos ou < 40 kg) e até 0,5 mg (0,5 mL)
em adultos. A sua administração pode ser repetida após
cinco minutos, até ao máximo de três administrações. Nas
situações em que esteja disponível um dispositivo de autoadministração
de adrenalina, este poderá ser usado em
alternativa à adrenalina em ampola; a disponibilidade deste
dispositivo permite que a adrenalina seja administrada
mais rapidamente, nomeadamente em ambiente pré-hospitalar
(por exemplo pelo próprio doente ou por um acompanhante)
e/ou quando não há ampolas de adrenalina
imediatamente disponíveis. Os dispositivos de autoadministração
de adrenalina existentes em Portugal têm duas
doses disponíveis – 0,15 mg (para crianças com peso <
20 kg) e 0,3 mg (para indivíduos com peso ≥ 20 kg). Nos
doentes com diagnóstico prévio de anafilaxia a quem já foi
prescrito dispositivo de autoadministração de adrenalina
não deve ser assumido à partida que já foi feita a administração
deste fármaco; estima-se que mais de 70% não o
transportam permanentemente consigo, que cerca de 3/4
não o administrariam de imediato em situações de anafilaxia
e que menos de metade são capazes de o utilizar adequadamente.
A via intramuscular é a via de administração preferencial
da adrenalina porque, em comparação com a via subcutânea,
garante uma mais rápida biodisponibilidade, atingindo-
se um pico de concentração do fármaco em cerca de
8 a 10 minutos e, em comparação com a via endovenosa,
apresenta melhor perfil de segurança e duração de ação
mais prolongada.
A adrenalina é um agente simpaticomimético, que promove
vasoconstrição e aumento da resistência vascular
periférica, com diminuição do edema da mucosa (ação
α1-adrenérgica). Apresenta também efeitos inotrópico e
cronotrópico (ação β1-adrenérgica), aos quais se aliam o
efeito broncodilatador e o efeito a nível dos mastócitos e
basófilos, impedindo a libertação de mediadores inflamatórios
(ação β2-adrenérgica). O mecanismo de ação ímpar
da adrenalina, a nível respiratório e cardiocirculatório, permite
um alívio rápido dos sintomas e posiciona-a como o
fármaco de eleição para o tratamento agudo da anafilaxia,
ao contrário de outras terapêuticas reconhecidamente menos
eficazes e de início de ação mais lento, como os anti-
-histamínicos e os corticosteróides.
Não existem contraindicações absolutas para a administração
de adrenalina. As reações adversas descritas
na literatura relacionam-se maioritariamente com erros
de dose ou via de administração incorreta .A decisão de
administrar adrenalina não deve ser adiada, dado que a
ausência ou o atraso na sua administração se associam a
uma evolução menos favorável
Medidas gerais
Mediante as especificidades da situação clínica, devem
ser tomadas outras medidas terapêuticas como reposicionamento
do doente, fornecimento de oxigénio suplementar
e/ou fluidoterapia. O posicionamento do doente deve
ter em conta os sintomas apresentados, sendo preferível
o decúbito lateral nos casos de alteração do estado de
consciência, vómitos ou gravidez (neste caso específico,
decúbito lateral esquerdo). Se houver compromisso hemodinâmico
(hipotensão), a posição de Trendelenburg será
conveniente, mas se houver dificuldade respiratória a elevação
da cabeceira tende a ser mais favorável.
Durante o tratamento de um episódio de anafilaxia, o
doente deve manter-se sob monitorização contínua dos sinais
vitais. Adicionalmente, deve ser assegurada a permeabilidade
da via aérea e colocado um acesso venoso periférico
para administração da restante terapêutica adjuvante,
nomeadamente anti-histamínicos e corticosteróides
CONCLUSÕES
A anafilaxia é uma situação potencialmente fatal que
exige diagnóstico rápido e um tratamento atempado e adequado,
sendo a adrenalina por via intramuscular o fármaco
de eleição. As terapêuticas adjuvantes (anti-histamínicos,
corticosteróides, broncodilatadores e fluidoterapia) são
úteis, sendo o seu efeito complementar, nomeadamente na
prevenção de reações bifásicas. Contudo, estas terapêuticas
não substituem nem devem atrasar a administração
da adrenalina. Resolvido o episódio agudo, o doente deve
ser orientado para uma consulta de Imunoalergologia, de
modo a garantir uma conveniente investigação etiológica. A
notificação dos episódios de anafilaxia é obrigatória, sendo
o CPARA um instrumento útil na divulgação da informação
médica e um contributo precioso na eventualidade de existir
recorrência do episódio no mesmo doente
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